“... Nessa terra fértil de enredo
Se aprende desde cedo
Todo papo que se planta, dá ...”
Estas três estrofes pertencem ao samba enredo “O conto do vigário”, que acompanhou à escola São Clemente, no desfile das escolas de Rio de Janeiro no carnaval 2020.
Não vou fazer crítica do enredo nem avaliar o desfile da escola, pois não sou crítico literário (ainda que leia bastante) e os quesitos de afinação da bateria, mestre-sala e porta-bandeira, evolução, harmonia etc., definitivamente, não são meu forte. Porém, o tema desenvolvido pela São Clemente tem tudo a ver com o assunto desta matéria: o vigário que habita em mim.
Se parássemos para pensar, quantos “contos do vigário” contamos para nós mesmos? Quantas auto estórias aceitamos “sem medo de acreditar”?
O conto do vigário
A origem do conto do vigário data do século XVIII na cidade de Ouro Preto quando duas paróquias: a de Pilar e a da Conceição queriam a mesma imagem de Nossa Senhora Aparecida.
Um dos vigários propôs que amarrassem a santa no burro ali presente e o colocasse entre as duas igrejas. A igreja que o burro tomasse direção ficaria com a santa. Acontece que, o burro era do vigário da igreja de Pilar e o burro se direcionou para lá deixando o vigário vigarista com a imagem.[1]
Resulta evidente que quem faz o “conto do vigário” procura tirar vantagem de outro ou outros, fazendo propostas “lógicas” ou que sinalizam um benefício imediato e com pouco esforço. Lógico que é o vigarista quem ganha!
Entretanto, quem se beneficia quando caímos nos contos do “vigário que habita em nós”? Alguém ganha e alguém perde? Pode fazer BO? Como se proteger?
As ferramentas do nosso vigário
O nosso vigário, assim como aquele da igreja do Pilar, procura o melhor para nós: evitar nossa dor. Mas não estou falando da dor física senão da emocional.
Este vigário tem muitas áreas de expertise, mas, dado que estamos no Blog do BEM, vamos focar na área das decisões financeiras e de consumo. Para alcançar seu objetivo se vale de diversos recursos: - foca no que é “gratuito”; - se vale da “contabilidade mental maleável” ou criativa (a mesma moeda tem valor diferente dependendo da categoria de despesa. E as categorias criadas sempre acabam justificando o que queremos!);
- também utiliza a “contabilidade emocional” (gastamos dinheiro dependendo de como nos sentimos com relação a ele). Dinheiro “fácil” se gasta com menos controles do que aquele “suado”;
- pratica os “pecados financeiros”[2];
- adora os anestésicos que evitam a “dor do pagamento” (débito automático, cartão de crédito e de débito);
- se vale do princípio de que o agora é importante, o futuro não.
Evitando que o vigário “plante seu papo”
Parece que o vigário tem todos os argumentos para ganhar e será assim se não utilizarmos algumas armas básicas:
- Não compare preço, compare valor. Dan Ariely, no livro Psicologia do Dinheiro, associa o valor à importância de algo. Mas para isolar essa importância das emoções (a emoção, que provoca as compras por impulso, é uma das ferramentas preferidas do “nosso vigário”) vale a pena avaliar o custo de oportunidade dessa compra (custo de oportunidade será o tema de uma outra matéria).
Uma forma de comparar valor e não preço é (após ter avaliado a necessidade e utilidade desse bem ou serviço), transformar os preços em horas de trabalho. Exemplo: imagine que o valor da sua hora de trabalho são R$10,00 e você vai decidir entre um produto que custa R$150,00 (básico, mas que entrega o que promete e resolve a necessidade) e um outro que custa R$220,00 (charmoso, badalado pelos “famosos e famosas”, e que também atende a necessidade). Para comprar o primeiro, você precisa trabalhar 15 horas e para comprar o segundo, deverá trabalhar 22 horas. Avaliando desta forma, qual elegeria?
- Cuidado com as “cômodas parcelas”. Você compra um bem ou serviço, não parcelas. Ao focar no valor das parcelas volta a comparar preços e ... o vigário entra em ação!
- Cuidado com o crédito. Você não tem dinheiro para fazer essa compra e aí aparece alguém lhe oferecendo o dinheiro para fazê-la. Dependendo do bem, até que lhe oferecem pagar em muitas parcelas e com taxa de juros zero! O vigário deita e rola frente a essas ofertas e vai convencê-lo(a) a comprar! Mais uma armadilha para não comparar valor!
- Cuidado com o “efeito manada”. Se os outros fazem, eu também! Se não parar para pensar (custo/benefício, valor e custo de oportunidade), o vigário vai decidir por você e você fará o que os demais fizeram!
- Cuidado com o efeito “auto manada”. Em situações similares a esta você decidiu agir de uma certa forma. Por que fazer diferente agora? Minha recomendação: pense, será que a situação é exatamente e mesma? Pare, respire e avalie de uma forma mais racional (já sabe como!).
- Cuidado com as descrições. A linguagem pode moldar como enquadramos nossas experiências. O risco de selecionar a descrição “mais bonita” nos faz esquecer de que estamos comparando itens. O mesmo acontece quando uma descrição contém palavras “justas”, tais como: artesanal, feito à mão, orgânico, que parecem demonstrar mais esforço.
- Cuidado com as linguagens “obscuras”, pois transmitem uma sensação de expertise (fala enganosa).
Cadê o vigarista? Como identificá-lo?
Resultaria muito fácil dizer que “o vigarista que habita em nós” está sempre mais alerta e que pouco ou nada podemos fazer. Aí viramos vítimas, temos um culpado e ... o vigarista triunfa mais uma vez!
O vigarista habita em nosso cérebro e, dado que o cérebro é nosso, podemos controlá-lo. Basta termos objetivos claros, priorizá-los, conhecer os recursos disponíveis e fazer planos para alcançar essas metas, controlando o consumo de recursos.
Esta é a trilha do BEM que sempre falamos.
[1] ESCOLA, Equipe Brasil. "Conto do Vigário"; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/curiosidades/conto-do-vigario.htm. Acesso em 26 de fevereiro de 2020. [2] ARIELY, DAN e KREISLER, JEFF. A Psicologia do Dinheiro, Ed. Sextante, 2019 (edição para kindle)
--- Silvio Bianchi é Pós-graduado em Educação e Coaching Financeiro, Master Coach, Coach Financeiro, Treinador e Palestrante. Cofundador de Bem Financeiro – Desenvolvimento em Finanças, responsável pelo escritório de São José dos Campos.
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